ENTRE O ESPAÇO E O TEMPO

MÁRIO CABRITA GIL

 

 

O convite fica feito ao público em cada tentativa de aprofundar o que diz a sua mais recente obra: “só visitando e vivendo se consegue ter a percepção do seu significado”. Falamos de Mário Cabrita Gil e da instalação ‘do (espaço) e do (tempo)’, actualmente exposta na biblioteca da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa.

 

Por Cesarina Sousa

 

“Sou melhor com as imagens do que com as palavras” desvela Mário Cabrita Gil  preferindo citar o crítico João Pinharanda na hora de explicar o seu próprio projecto intitulado ‘do espaço e do tempo’: “partindo de si próprio enquanto modelo, procurando o seu corpo e na matéria do seu corpo os significados profundos do seu destino. Mário Cabrita Gil deixa para trás a revelação de uma identidade individual, de um retrato ou, mais ainda, de um auto-retrato, e rapidamente se aproxima de uma matriz universal, de uma medida ou de um cânone”.

 

Foi à biblioteca da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa que o fotógrafo resolveu apresentar a maquete com a ideia original. Quase parece ter sido uma escolha propositadamente pensada tendo em conta o carácter científico da Espiral de Fermat em grande escala que está agora exposta no átrio do edifício. Mas a escolha do espaço nada tem que ver com o sentido da obra, “foi uma coincidência”, refere Mário Cabrita Gil; “quando fiz o projecto não sabia onde haveria de o expor, nem fazia ideia nenhuma se o iria conseguir fazer porque é um projecto difícil de concretizar; a Faculdade de Ciências tinha iniciado um bom trabalho ao nível de exposições, ficaram interessados e patrocinaram a exposição”.  

 

Para a biblioteca “a ideia era de uma originalidade desafiante que a tornava irrecusável”.  Ciência e Arte uniram-se para dar forma a um projecto com raízes num trabalho anterior intitulado ‘In sinu matris’ (2004). “Nesse traballho a minha ideia era remeter para uma imagem uterina e foi como que o início desta temática e agora já há algo mais aprofundado”. O segredo está mesmo aqui. Do exterior para o interior e do interior para o exterior, a instalação ‘do (espaço) e do (tempo)’ é um confronto do artista consigo mesmo enquanto ser humano, logo é também uma viagem ao interior de cada indivíduo que por ali passa. 

 

Através de uma sequência de cortes de ressonância magnética expostos numa parede de grandes dimensões que nunca tem fim, Mário Cabrita Gil vai além da fotografia e revisita o seu passado cinematográfico porque para o artista “nós fazemos aquilo que somos , aquilo que nós vamos absorvendo ao longo da vida”. 

 

O visitante poderá ser apanhado desprevenido no momento de descobrir a obra, mas o fotógrafo explica os meandros desta espiral do tempo: “intencionalmente, segue-se por fora e começa com uma imagem, o tal exterior a partir do qual se vai entrando no cérebro; depois chega-se a interior e continua-se ao contrário, a ir para o exterior novamente”. Depois há uma particularidade nesta sequência: “a imagem final está de olhos fechados e a imagem incial está de olhos abertos”. 

 

Será a representação da descoberta de si mesmo? Será um fim alcançado? Será um abrir de olhos para o essencial de cada um? É aqui que o visitante tem uma importância fundamental na concretização da obra. “Tudo isto tem um significado e só estando lá é que se consegue apreender. Só visitando e vivendo e entrando dentro da Espiral é que se consegue ter a percepção de qual o significado”, clarifica o seu autor.

  

E onde está o porquê do Espaço e do Tempo que dão nome à instalação? “O trabalho é uma reflexão sobre o tempo em que vivemos, um tempo um pouco confuso em que uma pessoa não entende muito bem o que está a passar”, justifica Mário Cabrita Gil; “é um perídodo muito caótico da História da nossa sociedade e, por isso, eu faço o jogo de palavras e de frases”. Este jogo diz respeito às palavras “tempo” e “espaço” ligadas entre si em breves expressões para dar vida a uma sequência animada das imagens expostas, que se encontra no início e no final da viagem: “do espaço de tempo para tempo, com tempo para espaço de tempo, no tempo sem tempo para espaço de tempo, tempo de espaço no espaço do tempo”... uma espiral que tem a ver com uma reflexão sobre a vida, a morte, o finito, o infinito. É uma reflexão minha e penso que para as pessoas que o visitam também reflectirem”.

 

O convite fica feito para quem quiser confrontar-se com o outro e consigo mesmo. Até 5 de Março na Faculdade de Ciências e Tecnologia, no Campus de Caparica.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“inter somnia insomnia”, de Mário Cabrita Gil

Posted on Outubro 22, 2014

A arte é um fenómeno perene que se crê* exclusivamente humano. Perene porque – quando genuíno – é a única manifestação da criatividade que não caduca, que viabiliza sempre novas leituras e interpretações.

Que função tem a arte? É assunto tão complexo e vasto, que, mesmo que tal fosse possível, não caberia aqui abordar. Poder-se-á adiantar, em todo o caso, algo que aparenta obter um consenso generalizado: a arte, nas suas múltiplas manifestações, é uma forma do ser humano obter adequação ao mundo que o rodeia por via duma espécie de apropriação mágica ou, talvez, de sublimação. Através da arte o ser humano interioriza os fenómenos, a realidade objetiva e subjetiva que o envolve, converte-os em coisa sua, apropria-se deles. Depois, conforma-se, revolta-se, utiliza a arte como mimetismo social ou tranquilizante, converte-a em signo de status, forma de identificação. Mas tudo isso é já questão do foro sociológico, político ou psicológico. Já pouco importa.

Os autorretratos que Mário Cabrita Gil intitulou de “inter somnia insomnia”, que estão agora em exposição**, sugeriram a presente reflexão. Que leva alguém a fotografar-se, e depois a manipular as fotos produzidas, e depois ainda a reproduzi-las em grandes dimensões, depois de ter sido submetido a um exame médico destinado a detetar anomalias no sono?

A hipótese que defendo é que MCG quis, antes de mais, livrar-se dum incómodo, assimilando-o. Primeiro talvez, trivializando-o, remetendo-o para as gavetas duma memória seletiva, treinada, que quase todos os fotógrafos cultivam. Mas logo assumindo-a, dando-lhe um relevo que à partida não merecia ou que o artista não lhe queria atribuir. Foi por isso necessário transformar a memória-foto em memória-objeto, ou, melhor dizendo, em objeto-arte. É assim que a foto original se transmuta submetida a uma máscara obsessiva de padrões construídos a partir da própria imagem. Redundância óbvia – uma característica típica de toda a arte -, levada a um extremo que “anula” a foto original com o recurso… à própria foto. Sublimação pura.

Os quadros – acho melhor assim chamar-lhes – que Mário Cabrita Gil apresenta nesta exposição, são vários, mas não muitos. Em rigor poderiam ser apenas um. Fazem lembrar o poema de Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

Um só quadro ficaria sempre no meio do caminho, inevitavelmente, mas vários quadros reforçarão ainda mais esta ideia. A ideia de que é preciso olhar, assumir o que se vê, com coragem, com atrevimento, energicamente. Esta é a lição da “inter somnia insomnia” de MCG. Vão ver.

Daniel D. Dias

Exhibition
 
 
From the 3rd to the 19th of August of 2006 the Municipal Gallery of Montijo organized: "13 Artists | Digital Art".
 

 

NEW SYMBOLOGIES

 

The Montijo’s Municipal Gallery organizes and presents two exhibitions:

“13 Artists I Digital Art” and “New Symbologies I Performance and Limits”.

The first exhibition, of a broad character, gathers authors who, in a certain way, have participated at the beginning of the Digital Art in Portugal: Américo Silva and João Menéres; along with an intermediate generation: Ana Rosário Nunes, Mário Cabrita Gil, Vasco Azevedo e Silva and other younger authors who have learned and diversified this inheritance: Andreia Neves Nunes, Catarina Araújo, D’Aguiam, Paula Nobre, Ricardo Castro, Rute Rosas and Tânia Araújo.Thus, the proposals presented will account, even if not extensively, for what has been the evolution of the Digital Art in Portugal, in the field of Digital Photography, Performance and Video Performance. 

The second exhibition aims at reflecting on the concept of new symbologies (v. interdependences with a thought of abstract matrix) – inspirator, cause and effect of a computer’s civilization and which tends to substitute the qualities of the living being by a certain spiritualistic magnetism. 

It includes, besides almost all the quoted names: Albertina Mântua, Jaime Silva, Gonçalo Ruivo, Lúcia Vasconcelos, Paiva Raposo and Catarina Cabral – who, in areas such as Drawing, Painting and analogical Photography, constitute the clarifying and argumentative pole of this exhibition. 

With its matrix set on the tangible, the analogical thought, of relational nature, supports our daily existence, and enables to establish links between the man and the surrounding world. 

It presupposes the valuation of the eye and the look, the importance of the hand. Because, it is obvious, the domainof doing is prior to the thought. We live today, in what has been designed to nominate: image civilization, but, in fact, we can acknowledge it has of: image inflation. We should speak of exact inter-relation, according to our brain’s model of progressive specialization, between the sight and the thought. We are, however, submersed in static apriorisms, ratings, calculations and predictions. 

Through the image manipulation, the artists of these exhibitions acquire an interrogative freedom, which is experienced in their works. They manifest an acute conscience of both their own and the other’s body, viewed as near and distant. They reflect on the concept of identity. They move forward in the domains of the unconsciousness, in drawings that disclose the invisible through the visible; either they refigure the fundaments of the perceptive act; or they question the painting asdomain of unnoticeable image, in full inter-subjective communication. Interconnected sights and various queries, these are, therefore, the core that supports these exhibitions, of which several illations will be drawn out.

For me, one has to rethink the human as human; to relocate the lived, the existence, in what it has of most striking: the innumerable, the randomness, the indetermination. 

 

To, simply, live.

 

Jaime Silva

Most of the texts on this site are written in Portuguese as originally written by their authors.

2015 - Res extensa, ou corpo máquina

Fotografias de Mário Cabrita Gil

 

Texto Abertura

 

As fotografias de Mário Cabrita Gil que integram esta exposição exploram o ato médico, como um ato artístico, recuperando uma relação do homem-ciência, e explorando as fronteira entre arte e tecnologia. Tal como a “magia naturalis” de della Porta despertou a curiosidade das experiências científicas, em meados do Século XV.

Numa abordagem “renascentista” da imagem fotográfica na era digital, em que se apropria de um médium técnico exclusivo da medicina para explorar as fronteiras de um universo invisível ao olho humano, Mário Cabrita Gil opera uma transformação do ato fotográfico, tal como o fez Augusto Bobone em 1896, com as suas “Foto-radiografias”.

Se em 1890 Marey experimenta o dispositivo fotográfico para ver e documentar o corpo em movimento assim como fotografar “o invisível” do corpo, Mário Cabrita Gil entra pelo corpo dentro, neste caso o seu, e expõem-se sem preconceitos, transformando a relação corpo-máquina numa relação plástica com o espectador. 

A simulação ecográfica de corpo “uterino”, re-cria um corpo máquina, capaz de se reinventar para voltar a nascer num universo puramente ficcional, o de uma nova era da fotografia digital. 

Ao substituir o médico pelo espectador, Mário Cabrita Gil altera a matéria e a génese conceptual da imagem do corpo, ou “rés extensa”, em objeto artístico. 

 

Ana David Mendes

 

Nota: As Fotografias foram cedidas gentilmente por Mário Cabrita Gil.

2014 - INTER SOMNIA INSOMNIA

 

Sobre o retrato do artista na eminência de um evento…

 

Inter Somnia Insomnia é o título que Mário Cabrita Gil deu a este conjunto de fotografias a cores, em grande formato, que são auto-retratos do artista exibindo toda a parafernália de aparelhos e eléctrodos adesivos necessários para a realização de um estudo poligráfico do sono, estudo onde se procuram detectar anomalias que ocorrem durante o sono.

O artista tem uma longa carreira ligada ao cinema e à fotografia, tendo começado como operador de câmara e director de fotografia em 1970 e tendo iniciado a sua longa lista de exposições fotográficas em 1979. A par da sua carreira profissional nestas áreas, nunca deixou de, paralelamente, expor a sua obra fotográfica, onde revelou as suas preocupações artísticas, num trajecto diverso mas coerente. No seu espectro de interesses destaca-se o retrato, como em Idade da Prata (1986), Imagem das Palavras (1991), 30 retratos de mulheres (1998) ou em Entardecer em Alfama (2000), o corpo, como em Contacto (1997) ou Discursos (1999)  e o corpo transfigurado pelas novas técnicas imagiológicas, como em in sinu matris (1994) ou em do espaço e do tempo (2009). 

O retrato, e em particular o rosto, é um objecto clássico dos fotógrafos, porque o rosto é portador duma qualidade paradoxal: por um lado é a afirmação da singularidade de cada indivíduo, transporta nas suas rugas, nas suas cicatrizes, no relevo das suas concavidades e saliências, a memória do tempo e as marcas do percurso vital de cada pessoa, dando, através da transparência dos olhos a ilusão de podermos espreitar a alma e alcandorando-se a uma dimensão sagrada através da sua capacidade de, diante do espelho, poder prefigurar a morte, mas, por outro lado, o rosto é opaco, enganador, ambíguo, podendo induzir uma realidade e o seu contrário, ocultando a verdade única, misteriosa e impenetrável que cada pessoa transporta dentro de si. 

Mais cedo ou mais tarde o auto-retrato acontece em muitos artistas, alguns dizem que por motivação narcísica, eu penso que muitas vezes acontece porque o nosso rosto é o que está mais à mão, aberto à tortura sem termos que pedir licença, funcionando como uma ferramenta para transmitir algo que nos acudiu no escrutínio sensível que os artistas mantêm, em permanência, da realidade que nos cerca. Às vezes demoramos mais na observação do nosso rosto e temos mais tempo para nos espantarmos com a estranheza de uma luz, duma expressão ou de uma encenação temporária. Nestas alturas, a superfície (surface em francês) do nosso rosto transforma-se numa película reveladora que impressiona a nossa sensibilidade e desperta a pulsão criativa.

Creio que terá sido isto que Mário Cabrita Gil descobriu quando se olhou ao espelho, depois de lhe terem sido instalados todos os mecanismos de monitorização que o exame complementar implica. A invocação de um homem bomba na eminência de se fazer explodir, o fantasma de estar ligado à máquina, o que normalmente não augura nada de bom, a semelhança com instrumentos de tortura, a visão de um Deus Ex-Machina, expressão da superação da história e da mortalidade, propagada pelos ciberfilósofos ciberfuturólogos, a armadura para descer ao abismo dos nossos pesadelos, a fragilidade e caducidade da nossa matéria, a angústia da descoberta de um rombo na fantástica complexidade do nosso organismo vivo, tudo isto ou outra coisa qualquer pode ter despertado o fotógrafo para pegar na máquina e fazer-se retratar naquele momento.

Para a eficácia desta obra contribui a escala e alguma dimensão pictórica que resulta do tratamento digital do fundo, onde se multiplicam uma miríada de micro-retratos, numa estratégia que o artista já tinha usado em obras anteriores, como em in sinu matris. 

Se a era digital veio acentuar a desmaterialização da obra de arte a fotografia digital em particular, veio expandir a possibilidade de manipulação da realidade até aos limites da nossa imaginação, apagando, desintegrando, distorcendo, multiplicando, simulando, inserindo, criando formas nunca vistas ou criando novas realidades a partir de pixels abstractos, em qualquer dos casos ampliando exponencialmente os recursos expressivos dos artistas na criação de novas ficções. Citando Azis e Cucher: "Cada imagem, cada representação, é agora uma fraude potencial e a simulação é a única verdade em que podemos confiar"

Se a fotografia é a interface entre o sujeito e o mundo que o rodeia, como refere Regis Durand, a imagem fotográfica processada digitalmente é a interface entre o meio analógico e o digital, resultando num suporte tão radicalmente diferente que Timothy Druckey lhe chama imagem pós-fotográfica.

Tudo é justificável em função da intenção última, que é universal à condição de artista: fazer-nos ver para lá da pele visível da realidade, fazer-nos compreender, através dos sentidos, algo que está para além do dizível, atingir-nos no punctum de que falava Roland Barthes e, dessa maneira, engrandecer um pouco a nossa capacidade de ver e entender o que está à nossa volta ou a nossa própria natureza. 

 

Luís Campos

Lisboa, 1 de Outubro de 2014

 2009DO ESPAÇO E DO TEMPO

 

os limites do humano

 

MCG é um fotógrafo de pessoas, sempre se confrontou com os outros.

O olhar é o meio que nos permite esse confronto, através dele estabelecemos as pontes que desenhamos entre nós e o nosso exterior. E onde amarram essas pontes que incessantemente lançamos? Nos rostos e nos corpos, deles e nossos, num processo de infinitos reenvios e salas espelhadas.

Um dia, o fotógrafo que registou o rosto inquieto de uma geração concreta (A Idade da Prata, Galeria Cómicos, Lisboa, 1986) ou a melancolia de uma cidade que acaba lentamente (O Entardecer em Alfama, Arquivo Municipal de Lisboa, lisboa, 2000) ou a beleza sem disfarce de um par adâmico (inicialmente integrado como arte pública no programa da Lisboa 1994, Capital Europeia da Cultura, Lisboa, 1994, posteriormente apresentado na exposição Discursos, Galeria Novo Século, Lisboa e Banco de Portugal, Leiria, 1999) ou o labirinto anónimo e fragmentar da humanidade (In Sinu Matris, exposição e instalação, Galeria Municipal do Montijo, 2005) ou, integrando também este último projecto, o confronto do seu próprio corpo.

Mas talvez MCG tenha sido mais exigente consigo mesmo que com os outros, talvez o fascínio documental que lhe suscitam os retratos, o fascínio sensorial que lhe sugere a nudez ou a inquietação que se desprende da uniformidade dos corpos sejam insuficientes para cumprir o desejo de se conhecer a si mesmo. Por isso ele procura em si a última fronteira do corpo com o seu exterior e mesmo o interior do corpo como fronteira de onde não se pode recuar.

Como é que através da imagem de uma superfície (um rosto, um corpo) se consegue alcançar toda a densidade de uma personagem, o peso das histórias que moldaram a humanidade? Em que medida o corpo nu real se torna um modelo abstracto e geral (In Sinu Matris, instalação, ibidem)? Mas, mais ainda, de que modo, depois dele, existe um corpo por debaixo da pele, por debaixo ou dentro dos ossos que estão debaixo da pele? Em que medida, o que existe por dentro de tudo isso, o que existe dentro de tudo isso, ou seja, dentro do corpo, pode ser metáfora de uma interioridade que vive mais das palavras que a descrevem, das imagens literárias, que das imagens visuais que a mostram? Em que medida, registar as imagens do cérebro em funcionamento nos pode conduzir à consciência de que estamos a ver um ser psicologicamente complexo, aterrorizado com a morte, libertado pelo amor, fechado na sua casa, aberto ao mundo?

É o especial dispositivo de montagem desta exposição (a surpreendente espiral de Fermat) que, de modo agudo e inteligente, dá sentido à  sequência temporal que, em si mesmas, estas imagens já revelam. É ao percorrermos o espaço ocupado pela espiral do tempo, que se enovela e se desenrola (nos prende e nos liberta e de novo nos prende) que melhor percebemos o objectivo que MCG pretende alcançar: revelar através de um testemunho neutro (uma sucessão de imagens científicas) a dimensão subjectiva de qualquer corpo, a sua simultânea imensidão e pequenez.

Partindo de si próprio enquanto modelo, procurando o seu corpo (eliminando o que nele nos podia distrair da sua essência, atravessando-o, mergulhando nele) e, na matéria do seu corpo, os significados profundos do seu destino, MCG rapidamente deixa para trás a revelação de uma identidade individual, de um retrato ou, mais ainda de um auto-retrato, e rapidamente se aproxima de uma matriz universal, de uma medida ou de um cânone. As máquinas científicas que registam as imagens substituindo a máquina fotográfica, os computadores que ajudam a tratar e sequenciar as imagens, são instrumentos complementares de um discurso verbal sobre os limites da humanidade e do humanismo, criam um poderoso discurso visual que consegue delimitar o Homem no Universo (em relação a si em relação aos outros; em relação ao fluir das coisas). Essas imagens fazem-nos perceber como nos deslocámos no tempo e no espaço, parecem vindas de um passado estelar. Aquele Homem, cuja imagem é dividida em finas secções pela faca virtual de uma máquina de ressonância magnética revela-nos o fundo dos tempos: chega de um momento inicial, liso, limpo, em expansão; mas a sua imagem, multiplicada e presa no circuito infinito da Espiral de Fermat, desvenda os tempos deste futuro confuso e em retracção em que nos encontramos.

 

João Pinharanda

Lisboa, 29SET09

2004 - Exposição "in sinu matris"

 

O cerco do corpo

 

 Que a imagem está hoje muito longe de qualquer relação com um dispositivo de verdade, é uma questão que parece já ultrapassada há várias décadas. Mesmo nos seus inícios a fotografia foi dotada de um estatuto paradoxal. O que vemos? Uma imagem-documento ou uma encenação? Esta questão deixou de ser pertinente, numa época em que a imagem está incluída na retórica de qualquer comunicação, quer esta seja artística, científica ou instrumento de persuasão publicitária, porque só o contexto e os seus protocolos de recepção nos poderão fazer decidir.

Assim, a aproximação a uma imagem, ou um conjunto de imagens apela, forçosamente, a uma progressão, através da qual a nossa gestalt se vai transformando. Na exposição que acompanha este catálogo, trabalha-se com essa consciência, do carácter não ingénuo da imagem, bem como da sua versatilidade. Mário Cabrita Gil parte de pequenas imagens fragmentadas de um corpo humano (ou de vários): orelha, mão, seio, braço, dedos do pé, e é a partir dessas minúsculas imagens que tudo começa. 

No sentido inverso, por exemplo, a um John Copplans — referência obrigatória na fotografia contemporânea que toma o corpo por objecto — em que a dessacralização do corpo se faz pela proximidade excessiva, obtida com uma câmara de grande formato, aqui parte-se de uma imagem muito pequena, e, através da multiplicação digitalmente processada, essa imagem é repetida até configurar um enorme quadrado de 140cm de lado. O resultado é uma imagem que, ao primeiro olhar, se assemelha a um padrão têxtil ou de revestimento arquitectónico, onde apenas se vislumbra um traçado geométrico. A primeira percepção dá-nos, pois, uma imagem abstracta. O referente desta imagem que percebemos não é um objecto, uma coisa, mas uma outra imagem, trabalhada em computador,  ou, mais do que uma imagem, uma construção imagética. Mário Cabrita Gil convida-nos assim, através de uma “pós-imagem”, a uma reflexão sobre o pós-humano.

Porquê? Qual o sentido deste conjunto de imagens-montagens? Ao passarmos os olhos por estes enormes “quadros”abstractos, e à medida que nos aproximamos e finalmente descortinamos a “matéria” de que são feitos, somos atravessados por um sentimento de morte inevitável. A fragmentação gera aqui, reforçada pela cor crua e pela repetição exaustiva, uma perda do sentido de totalidade e de percepção subjectiva da identidade que sustenta a imagem do corpo, de qualquer corpo. O artista convida-nos a reflectir sobre a nossa condição de mortais, sobre a dialéctica vida-morte que a consciência humana, a partir do século XX, se tem ocupado em recalcar. Deste modo, a insistência na repetição fragmentária de partes do corpo, que se perdem e esvaziam num padrão abstracto, mais não faz que reiterar, não uma euforia narcísica mas o seu inverso. Numa época em que a cultura de massas se ocupa em denegar a morte, o fim inevitável do ser, através de uma aceleração eufórica  do tempo, é somente no campo das artes que nos é permitido pensar sobre esse aspecto da condição humana desde o início rejeitado pela consciência.

Por outro lado, esta série de imagens remete-nos igualmente para a constatação do sentimento de pavor que caracteriza o mundo contemporânea face à corporalidade, à ideia de que a sua identidade é indissociável de uma matéria corruptível, sujeita ao tempo. De alguma forma é como se aqui estivessemos diante um memento mori, o contraponto barroco da “vanitas” face ao mundo do efémero.  A presença do corpo, desfigurada como nos surge nestas imagens remete, justamente, para essa relação com a percepção do corpo como objecto separado do sujeito, que este analisa, ama, rejeita, com o qual se angustia, já que é a parte de si que está marcada pelo tempo. Não é por acaso que o tema do duplo e do espelho se tornaram tão centrais na cultura ocidental a partir do século XX ( e mesmo do final do século XIX): o duplo, por mais terrífico que seja, é sempre uma hipótese de continuidade do Eu, uma forma de o sujeito se subtrair ao tempo e à ideia de fim. Numa outra dimensão, o duplo é inevitavelmente um écrã consciencializador da solidão individual, e da perda de sentido que essa consciência acarreta.

Um segundo pólo da exposição, que consiste numa instalação de 5 imagens e som (do bater do coração), complementa esta série. Estas imagens foram obtidas através da exposição do corpo do artista num aparelho de ressonância magnética (tecnologia usada na semiologia médica), resultando em cinco poses diferentes, consoante a rotação do corpo. O facto de aqui as imagens serem, naturalmente, a preto e branco, e serem vistas numa semi-obscuridade, acompanhadas do som do bater do coração, recria um ambiente intra-uterino.

Podemos agora compreender a articulação dos dois pólos da exposição: enquanto a primeira série nos remete para a dessacralização do corpo e para a ameaça de desintegração que está metaforicamente contida na diluição da referência da imagem (o corpo) numa imagem abstracta, a segunda encerra-nos no ciclo de vida, utilizando o bater do coração como metáfora da temporalidade. 

De alguma forma, a saída aqui apontada não deixa muitas alternativas para a questão do sentido, a única questão realmente importante na história da vida humana: há um nascimento e uma morte, e o único modo de encontrar o sentido na relação prosaica que mantemos com o mundo é superar a alienação que está implícita…nessa mesma busca do Sentido. 

A forma estética encontrada por Mário Cabrita Gil neste projecto revela precisamente essa luta, esse conflito pelo sentido vivido minuto a minuto no mundo contemporâneo, cercado por imagens onde a morte é simultaneamente afirmada e negada, conduzindo o homem numa fuga para a frente. Mas não há para onde fugir — do corpo.

 

Margarida Medeiros

Lisboa, 25 de Setembro de 2004

Texts

Corpos de Prata

 

Por JOÃO PINHARANDA

Domingo, 5 de Dezembro de 1999

 

De prata porque a perfeição do ouro não resiste à perfeição da realidade. Mesmo assim, de prata porque se a idade que vivemos é bem mais de bronze que de um nobre metal, é ainda com o espelho branco da prata que podemos sonhar a eternidade do que é efémero. De prata, finalmente, porque na história velha da fotografia os sais de prata tiveram decisiva importância na fixação e revelação das imagens.

Finalmente, reduzidas a uma dimensão exponível - embora grandes (122x156 cm) o seu tamanho actual não é comparável com o que tomaram aquando da sua integração no projecto da Sétima Colina (no âmbito da programação de iniciativas para a Lisboa Capital Cultural,1994). Então, um restrito conjunto de outdoors subia do Cais do Sodré ao Príncipe Real, acompanhando a marcha de renovação urbana aí praticada. Dois bailarinos nos quais se confronta, em oposição, a cor da pele e o sexo, ensaiam a nu, poses fragmentares (nunca qualquer rosto se identifica ou corpo se desnuda inteiro) de tensão evidente. Nelas se revela um jogo de domínio e poder, de sedução e afecto. Sem nunca se desviar de um esteticismo equilibrado, sem nunca criar rupturas com a elegância da composição e a suavidade do imaginário comum as fotografias de Mário Cabrita Gil procuram um equilíbrio classicizante. E confrontam-se, ainda nesta exposição, com uma série anterior (datada de 1986). Aí o fotógrafo dava conta dos protagonistas da movida lisboeta dos anos 80. A série teve umaexposição na galeria Cómicos (actual Luís Serpa) e foi editada em livro sob o título "Idade da Prata". Tratava-se, noutra dimensão, de falar do que não podendo também ser ouro desejava evitar a decadência do bronze... São retratos de gente que passou ou que ficou, que deu a cara e a vontade criativa a uma situação já histórica. Os corpos dos bailarinos não envelhecerão nunca - por não terem alma. Os heróis concretos de uma década já estão velhos quando posam para o fotógrafo - por esse golpe de alma sobrevivem.

Espaço e Tempo

 

Do Espaço e do Tempo

 

 

Espaço e Tempo são duas dimensões que a Física moderna correlacionou de uma forma imaginativa e inesperada. Tão surpreendente, que estimulou não só o mundo científico mas os outros mundos literários e artísticos. Espaço e Tempo ligam o “dentro e o fora”: o universo interior e o universo exterior. 

 

O ser humano resulta de etapas de conjugação de elementos químicos em arquitecturas que vão adquirindo maior complexidade, construídas sob o “olhar atento” de um plano director (DNA) que impõe ordem à desordem: em oposição, a morte é o retorno à desordem. Este plano está ligado a espaço-tempo: ao tempo de criar e evoluir e ao espaço de confinação, através da criação de estruturas (“membranas”) que permitem recriar espaços “dentro e fora”. Todo o mundo interno e externo é um contínuo de “in/out” - dentro e fora do núcleo celular, da célula, do órgão, do tecido, do organismo ... dentro e fora do planeta Terra, do Sistema Solar, da Via Láctea em colisão com a galáxia Andrómeda... A expansão e contracção do universo são resultados da expressão temporal-espacial, da ordem e do caos, e do conceito de retorno... a existência de um ritmo, de ciclos...

 

Mário Cabrita Gil propõe nesta exposição um olhar de “fora para dentro” do corpo humano, onde as estruturas complexas do cérebro e suas formas nos desafiam a um olhar atento. O fotógrafo/artista entra em “ressonância” com o universo envolvente e escrutina a natureza, as estruturas e as formas. Espaço e tempo estão aqui presentes, de um modo mais imediato pela observação da localização dos tecidos e dos fluxos de fluidos, e indirectamente no assumir da dimensão tempo de uma forma consciente ou inconsciente. Por isso a instalação é muito mais arrojada do que pode parecer ao olhar incauto, pois implica também uma reflexão sobre a percepção do mundo interior e exterior baseado na aplicação de novas tecnologias (Imagiologia Médica) – uma proposta de ver o mundo onde estamos e para além dele.

 

 

José Moura

Director da Biblioteca

 

Data, 2009

2001 - O olhar que se devolve à cidade

 

O trabalho de Mário Cabrita Gil, uma foto-instalação, coloca-se numa outra posição: a da recriação de uma ambiência, dando aqui ao rio o papel principal: uma enorme ampliação de uma vista do rio sobre a cidade, junto à qual se ouvem sons provenientes das famílias de golfinhos residentes nestas paragens, ajuda o visitante a reencontrar-se com uma paisagem diária, por vezes já invisível, e que lhe é aqui devolvida. A proposta aqui é muito mais a de usar a fotografia como pretexto para uma recuperação sinestética que contrarie a banalidade quotidiana, e, desse modo, devolver aos seus habitantes (ou outros visitantes) uma imagem da cidade mais humana.

 

Margarida Medeiros

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